pineapple dress


Telefonou-me. Se eu não era a sua mãe adoptiva.
"Sim, somos nós, os teus pais adoptivos".
Então, perguntava ele, porque é que ainda não o tínhamos ido buscar?
"Não sabia que era preciso trazer-vos para casa!"

Tínhamos também adoptado outra miúda, de 16 anos. Essa, como não exigiu nada, ficou lá.

Mas o miúdo franzino não deixou escapar a sua oportunidade e quis, aos 12 anos, vir para nossa casa, onde vivemos com o nosso filho Julião, de dois anos e meio.
Fui buscá-lo. Era bonito. Usava um colete preto e dourado, curto, que se apertava à frente com uns botõezinhos pequenos numas casas feitas de tira de pano que saíam da aba do colete. Esta forma de abotoar deixava uma faixa aberta que descobria assim a pele clara desde o esterno até à barriga.

Gostei dele, estava a esforçar-se por me agradar e saía-se bem, não se notavam muito aqueles truques de rufia que as crianças que crescem naqueles sítios aprendem e que este decerto também deve ter aprendido. Trouxe-o comigo e viémos a pé, pela rua. Puxei-o para mim e abracei-o, para que ele me sentisse mais sua mãe. Apalpou-me uma mama e chamou-me mamã. Espantosamente não foi um gesto ofensivo. Achei que era genuíno e terno. Até porque não faria sentido para ele estragar assim a pintura que se esforçava por fazer de si próprio. Nesse instante perfilhei-o no meu íntimo e decidi que no próprio dia haveria de lhe ir comprar muitas roupas. É que aquele colete, que lhe ficava lindamente, adequava-se bem a um órfão mas não a um filho meu.

Adorou a nossa casa, enorme, antiga: uma mansão. Percorreu os salões de baile vazios, o soalho levantado e podre aos cantos. Mexeu nos reposteiros pesados dos janelões. Mas ficou maravilhado foi com o quarto de brinquedos do Julião, cheio de prateleiras e prateleiras de brinquedos para crianças de dois anos e meio. Via-se que apesar da infantilidade dos jogos, ele estava ávido por ficar ali, a recuperar aquilo que tinha perdido em pequeno. Deixei-o a brincar.

Num dos outros salões estava o russo, a quem pertence a nossa casa. Folheava uma revista. A contracapa era uma fotografia do clube de futebol feminino dos meus tempos de escola primária. Pedi-lhe para ver melhor. Versões infantis dos rostos das minhas amigas vestidas com fatos de treino fora de moda. E de repente do lado esquerdo das desportistas, com a minha carinha bonita de menina de sete anos, estava eu. Com o cabelo penteado, um vestido cintado de saia rodada. Era a mais pequena de todas. Mostrei a fotografia ao russo e às suas jovens amigas que entretanto chegaram. "Olhem, esta não sou eu aqui no canto?" Olhares de incredulidade e de indiferença. Como é que eu podia ter sido assim, tão mimosa e delicada?

Vemos o vídeo da cena, com a mesma facilidade que o faríamos se a foto fosse um ícone do youtube onde carregamos para a imagem se animar. E ah, maravilha, era mesmo eu! A dançar alegre no meu vestido colorido, aquele que tinha um padrão de ananases estampados. Que graça. Era definitivamente eu, até reconheço aqueles passinhos de dança... Mas mais ninguém quis saber. Deixei a revista nas ervas grandes do pátio e fui a pé para o porto.

No iate do russo, encontrei-o sentado num sofá de napa branca perfurada. Vestia um kispo azul e branco com capuz. Queria que eu o fotografasse de forma a que parecesse um magnata russo. Ele era um magnata russo. Através da janela vi passar lá fora, uma amiga minha de longa data. Estava sol e o céu e o mar muito azuis. Explico-lhe a ele que os pais dessa minha amiga se conheceram na rússia. Isso entusiasmou-o. Tudo o que tinha a ver com o seu país o contentava.

Disse-lhe então para pôr o capuz. Ficava-lhe bem, em redor da sua cabeça de velho barbudo. Mas sendo o kispo azul e branco e a parte frontal do capuz ter uma cruz de cristo vermelha (daquelas das caravelas), achei que a coisa dava mais ar de lobo do mar francês (!) do que de magnata russo. Como se recusou a que lhe tirasse uma foto com as abas do capuz reviradas - um truque que tapava a cruz mas mostrava o pêlo falso do forro - abandonei o iate.

Trazia ainda no peito a preocupação da outra miúda, a de 16 anos. A sério que quando tínhamos decidido adoptar os miúdos, não sabíamos que era para os trazer para casa.

Observei-a. Tinha um perfil altivo, monárquico, inteligente. Não me ligou nenhuma, ia para a praia com os amigos, malta do golfe e do ténis. Muito bem vestida.

"Até ficava com ela", pensei eu, "mas deve estar quase a entrar para a universidade e isso vai trazer-nos uma despesa enorme." E tinha aliás todo o ar de quem não precisava de nós para nada. Mergulhou no mar. Eu e o Tomás vimos como se movia dentro de água. Era uma excelente nadadora. Tinha os cabelos muito compridos, como os das sereias.

Sabia que tinha o dever de a trazer, porque a tínhamos adoptado, mas também sabia que não tínhamos meios para ter ainda mais esta filha. De qualquer forma ela não estava interessada em nós. O Tomás reparou, e com razão, que ela tinha extensões no cabelo. Não entendo como podem haver miúdas assim nos orfanatos. Rezámos para que se tivessem esquecido que a tínhamos adoptado.

Voltámos os dois para casa, onde encontrámos a porta do congelador aberta, a do frigorífico mal fechada e as gavetas remexidas. Nada tinha sido roubado - nem havia nada para roubar - mas o gelo tinha derretido e o frango estava descongelado.

Que trabalheira íamos ter para educar aquele novo filho já grande juntamente com o nosso velho pequenino... não podia suportar esta angústia. Foi com extremo alívio - agradeci aos céus - por ter acordado do sonho numa manhã clara onde nos vi com um único filho vivo e real, todo nosso desde a sua concepção.

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